“Considerando um múltiplo de 3x receita nossa empresa vale 60 milhões.”
Durante meus anos como diretor de M&A da TOTVS, diversas vezes fui abordado por empreendedores que “sabiam” o valor de suas empresas com base em múltiplos. Embora eu não recomende chegar no comprador mostrando a etiqueta de preço da sua empresa, múltiplos são uma ferramenta valiosa para te dar uma noção do que é um valuation razoável.
Vamos explorar essa ferramenta e diferentes tipos de múltiplos que é útil conhecer.
Tipos de Múltiplos Comuns
Existem dois múltiplos de referência comumente utilizados na avaliação de empresas. O de receita e o de EBITDA (margem). Estes múltiplos são especialmente populares para empresas de capital aberto na bolsa de valores, como uma forma rápida e fácil de comparar organizações de setores similares e de tamanhos diferentes.
No entanto, essas empresas acabam servindo de referência para milhares de outras de capital fechado, quando precisam de alguma base de avaliação, seja para uma fusão/aquisição, seja para levantar capital ou oferecer equity de alguma outra forma.
O universo dos parâmetros de comparação não se limita a essa polaridade entre top line (faturamento) e bottom line (lucro).
EV/Receita
O múltiplo de receita (Enterprise Value/Receita) é particularmente popular, em especial porque mesmo empresas com receita relevante podem não ter lucro e ainda assim serem valiosas. O que isso quer dizer é que o valor da sua empresa é um valor X (o múltiplo) vezes a receita anual que ela gera. Por exemplo, se é adequado avaliar sua empresa por 2x receita e ela fatura 20 milhões por ano, 40 milhões seria um valuation adequado.
Embora olhar só para receita seja muito limitado, o modelo de crescimento baseado em capital de risco normalizou o foco em crescimento de faturamento em detrimento da margem de tal forma que mesmo empresas como Amazon e Uber, continuaram dando prejuízo por anos depois de abrir capital.
Hoje a norma no chamado “VC track” (o caminho escolhido por startups que levantam capital para crescer rápido) é não ter lucro. Por isso, se múltiplos são de alguma utilidade para avaliar uma empresa numa rodada de capital de risco (de maneira geral a partir de uma série B, são), o único que faz sentido é o de receita.
Durante o pico do mercado de VC em 2021 vi startups maduras avaliadas entre 10-15x a receita anual recorrente (ARR), caindo para 5-8x em 2023. Já para organizações menos sexy, como consultorias e outras prestadoras de serviço, tipicamente esse múltiplo será bem mais baixo, por volta de 1-2x.
EV/EBITDA
O múltiplo de EBITDA (Enterprise Value/EBITDA) é o padrão para empresas mais maduras com lucratividade estabelecida. Ele oferece uma visão mais próxima da capacidade de geração de caixa do negócio, excluindo impactos de diferentes estruturas de capital, regimes tributários e políticas de depreciação. A margem EBITDA (Earnings Before Taxes, Depreciation and Amortization) traz essa simplificação.
No mundo das empresas de alto crescimento às custas de lucro, esse múltiplo pode ser de pouca utilidade. No mundo das fusões e aquisições ele é muito popular, mas justamente por essa correlação entre rápido crescimento e baixo lucro, ele pode ser perigoso para sua empresa. Vamos falar sobre isso em breve.
Dependendo do momento e do mercado, múltiplos de EBITDA podem variar drasticamente. Este estudo da Univesidade de NY mostra este parâmetro variando entre 5x para indústrias tradicionais como aço até mais de 60 para setores de serviços financeiros.
Outros múltiplos setoriais específicos
Além dos múltiplos tradicionais de receita e EBITDA, existem métricas específicas por setor que podem fazer sentido para a sua empresa:
SaaS e Tecnologia:
EV/ARR (Enterprise Value/Annual Recurring Revenue): Foca apenas na receita recorrente anual, frequentemente o indicador mais valorizado em SaaS.
EV/Usuário ou Cliente: Especialmente relevante para plataformas com forte efeito de rede como redes sociais ou marketplaces.
Múltiplo de CAC payback: Razão entre o custo de aquisição do cliente e a contribuição de margem bruta mensal, mostrando eficiência de aquisição.
Varejo e E-commerce:
EV/GMV (Enterprise Value/Gross Merchandise Value): Comum para marketplaces onde o volume transacionado importa mais que a receita da plataforma.
Múltiplo por metro quadrado: Ainda relevante para operações físicas.
Saúde e Healthcare:
EV/Leito: Para hospitais e clínicas.
EV/Vida: Para operadoras de planos de saúde, medindo o valor atribuído a cada beneficiário.
Financeiro e Fintechs:
P/VPA (Preço/Valor Patrimonial): Clássico para instituições financeiras tradicionais.
EV/TPV (Enterprise Value/Total Payment Volume): Para empresas de pagamentos e adquirentes.
Educação:
EV/Aluno: Valuation por estudante matriculado.
Ou seja, para setores específicos, em especial mais maduros onde os modelos de negócios e rentabilidade tipicamentes são similares, outras métricas de comparação podem ser especialmente úteis.
Qual serve para a sua empresa
Em primeiro lugar é preciso entender o momento da sua empresa. Se ela está em alto crescimento com baixa lucratividade, múltiplos de receita são especialmente úteis, mas outros comparativos setoriais também podem servir.
Se a sua empresa é lucrativa, use os dois! Dependendo da sua margem múltiplos de EBITDA de mercado podem projetar um valuation bem menor do que os de receita. Nesse caso ambos podem servir de referência e o valor justo provavelmente está no meio do caminho.
Digamos que a sua empresa de consultoria estratégica fatura 20 milhões com margem EBITDA de 20% (4 milhões) e que os múltiplos do seu mercado indicam 2x receita e 8x EBITDA como referências. O múltiplo de EBITDA apontaria para um valuation de 32 milhões enquanto o de receita apontaria para 40.
Vantagens e Limitações dos Múltiplos
Enquanto essa ferramenta pode ser uma mão na roda para quem está entrando no quarto escuro de uma negociação de valuation, elas tem diversas limitações.
Vantagens
O fato de termos uma referência rápida de valor, popularmente conhecida facilita muito começar uma conversa. Isso te dá uma noção de realidade de quanto pode ser justo pedir pela sua empresa, uma referência que tende a ser compartilhada com potenciais compradores.
Embora empresas de capital aberto tenham múltiplos tipicamente mais altos pela sua liquidez (ou eventualmente mais baixos no caso de um cescimento estagnado), você pode invocar essas referências e elas serão pouco questionáveis.
Ou seja, praticidade é a grande vantagem dos múltiplos.
Limitações
Ancoragem é a grande desvatagem dos múltiplos. É o que torna eles limitados. O que isso significa é que essa referência se torna forte, até demais o que joga contra a negociação em casos “fora da curva”.
Digamos que você tem uma startup que fez pouco progresso em termos de receita, mas desenvolveu um software que tem um grande potencial de redução de custos para um comprador industrial em potencial. Pode ser que se sua empresa for comprada por um concorrente essa indústria ainda perca um significativo diferencial competitivo. Seu valor nesta transação não está limitado à sua receita. Pelo contrário, muito provavelmente há muito mais valor em sinergias que podem ser capturadas do que um múltiplo qualquer poderia projetar.
Mas o time de M&A do comprador vai ter dificuldade de se livrar dessa âncora. Em especial se estiver acostumado a adquirir industrias concorrentes, tradicionalmente avaliando-as por receita e EBITDA.
Além disso, múltiplos são péssimos em representar hype. A empresa quente do momento pode estar disputando a corrida do valuation, escalando round após round, sem qualquer embasamento em múltiplos. Se o investidor (ou comprador) chegar com a cabeça limitada por esse tipo de parâmetro de comparação, provavelmente vai perder o deal.
Em relação ao múltiplo de EBITDA, uma limitação adicional que vale destacar é: se você está negociando a aquisição da sua empresa, mas o plano é acelerar o crescimento, provavelmente sua margem de lucro vai cair. Se o múltiplo futuro for usado para negociar parte do valor (um earn out), você deve ser extremamente cauteloso.
O que você faz com tudo isso
Em primeiro lugar, faça seu dever de casa:
Entenda quais são as empresas de referência para você. Quais as de capital aberto e quais as de capital fechado, mas que você tem alguma referência de valor e métricas.
Entenda os múltiplos e métricas de referência dessas empresas. Para empresas de capital aberto isso é fácil. Mas pode ser que um concorrente de capital fechado tenha anunciado um round de valuation e divulgado métricas que te permitam calcular alguns múltiplos comparáveis com os seus.
Calcule os valores que poderiam ser oferecidos pela sua empresa de acordo com cada parâmetro.
Depois pense em tudo que pode ser usado para destruir a comparabilidade com estes múltiplos. Há argumentos que um comprador pode usar para invalidar a base de comparação que você usou e outros que você pode usar a seu favor, para aumentar o seu valor.
Se os múltiplos forem favoráveis para puxar seu valuation para cima, pode se preparar para usá-los. Se forem desfavoráveis, se prepare para refutá-los.
Em segundo lugar, se prepare para usar os múltiplos e NÃO usar na hora certa. Por exemplo, como ponto de partida para o valuation atual, sua receita e EBITDA atuais podem servir de base. Mas se há uma negociação baseada em performance futura (como earn out), o crescimento projetado deve impactar os múltiplos. Além disso, como disse, um crescimento acelerado deve impactar sua lucratividade. Cuidado. Se não conseguir escapar de um earn out calculado com múltiplos de EBITDA, tente deixar esse marco para o final. Assim você pode pisar no acelerador e crescer com baixa lucratividade nos primeiros anos e no final aumenta a lucratividade, mesmo que diminua o crescimento.
Conclusão
Quando estiver em uma negociação, lembre-se que múltiplos são apenas o ponto de partida. Prepare-se para discutir três camadas de valor: o “valor de mercado” (baseado em múltiplos), o “valor estratégico” (sinergias específicas para o comprador) e o “valor de oportunidade” (custo de não fazer o negócio). Os múltiplos servem principalmente para a primeira camada.