No último artigo sobre valuation, exploramos o princípio fundamental de que "caixa soma, dívida subtrai" como a base do valuation. Agora, é hora de falar sobre um dos métodos mais clássicos de avaliação de empresas: o Fluxo de Caixa Descontado (ou Discounted Cash Flow - DCF).
Para muitos founders, especialmente no mundo acelerado das startups, o DCF pode parecer uma relíquia do passado, algo que só faz sentido para empresas maduras e previsíveis. Mas será que devemos abandonar completamente esta ferramenta?
O princípio atemporal por trás do DCF
Por mais que o mercado mude, uma verdade fundamental permanece: uma empresa vale o que ela pode gerar de caixa no futuro.
É como um pé de limão que compramos para plantar no quintal. Não compramos pela árvore que é hoje, mas pelos limões que ela vai produzir nos próximos anos. O método DCF simplesmente tenta calcular quanto valem hoje todos esses limões futuros.
O desafio? Limões do futuro valem menos que limões de hoje. Se eu te oferecer um limão agora ou a promessa de um limão daqui a um ano, qual você prefere? Provavelmente o de agora, certo? Essa é a essência do "desconto" no fluxo de caixa descontado.
O paradoxo do DCF no mundo das startups
Se o princípio é tão lógico, por que muitos investidores de venture capital praticamente ignoram o DCF?
Imagine tentar prever quantos limões seu pezinho recém-plantado vai produzir nos próximos cinco anos. Difícil, não? Agora imagine que esse pezinho pudesse se transformar em uma laranjeira, ou talvez nem sobreviva ao primeiro inverno.
Startups em estágio inicial são exatamente assim:
Não sabemos se vão "vingar"
Não sabemos quanto vão "produzir"
Não sabemos se vão pivotar para um modelo completamente diferente
Com tanta incerteza, qualquer projeção de fluxo de caixa se torna quase uma obra de ficção.
Quando o DCF começa a fazer sentido
Conforme sua startup amadurece, o DCF se torna progressivamente mais relevante. Ele começa a fazer sentido quando:
Sua empresa encontrou o product-market fit e já tem um histórico de vendas consistente
Existe um caminho claro para a lucratividade, mesmo que alguns anos à frente
Seu modelo de negócios está relativamente estável - você já sabe quanto custa adquirir um cliente e quanto ele vai te trazer de receita
O mercado está passando por uma "volta à realidade" depois de uma fase de euforia, que é o que estamos vivendo agora na maior parte dos segmentos
Na minha experiência como diretor de M&A na TOTVS e depois como founder, o DCF raramente é o único método usado, mas serve como uma bússola importante, especialmente para confirmar que não estamos completamente desconectados da realidade econômica.
Adaptando o DCF para o mundo das startups
O erro mais comum não é usar o DCF para avaliar startups, mas tentar aplicá-lo como se estivesse avaliando uma empresa tradicional. É como usar regras de futebol para jogar basquete, simplesmente não funciona.
Aqui estão algumas adaptações importantes:
1. Pensar em cenários, não em previsões exatas
O comprador pode vir com um DCF tentando acertar exatamente quanto sua empresa vai gerar no ano 5. Se isso acontecer, provavelmente ele estará cheio de premissas conservadoras. Por isso é importante você conhecer e usar essa ferramenta também. Mas não faça uma simulação só. Simule múltiplos cenários:
O que acontece se crescermos conforme o plano?
E se crescermos mais devagar?
E se crescermos mais rápido, mas com margens menores?
Nenhum desses cenários vai se concretizar exatamente como previsto, mas juntos eles dão uma noção do espectro de possibilidades. E com eles na manga você consegue desarmar o analista de M&A com um suposto DCF a prova de balas.
2. A taxa de desconto é só outra forma de falar sobre risco
Sem entrar em cálculos complexos, pense na taxa de desconto como o "prêmio de risco" que um investidor exige para apostar na sua empresa em vez de colocar o dinheiro em algo mais seguro.
Uma startup em estágio inicial é tremendamente arriscada, como apostar em um cavalo desconhecido. O investidor vai querer um retorno potencial enorme para compensar esse risco. Isso se traduz em taxas de desconto muito altas, o que significa que fluxos de caixa futuros valem muito menos no presente.
Conforme sua empresa amadurece e se torna mais previsível, esse risco diminui, e com ele, a taxa de desconto também deveria.
A falácia do crescimento exponencial eterno
Um dos maiores problemas em modelos DCF para startups é a projeção de crescimento irrealista por períodos muito longos.
É fácil cair na armadilha de continuar projetando seu crescimento por um período mais longo e descobrir que sua startup se tornaria maior que o PIB do Brasil se continuasse crescendo na taxa projetada. É o tipo de previsão que faz qualquer investidor experiente sorrir educadamente enquanto pensa "esse founder tá delirando".
Todo crescimento eventualmente desacelera, seja por saturação de mercado, competição ou mudanças tecnológicas. Um bom modelo reconhece isso e reflete numa projeção de mais estabilidade que chamamos de valor terminal.
O DCF como ferramenta de negociação
O verdadeiro valor do DCF nas negociações de M&A não está necessariamente em definir um preço final, mas em estruturar a conversa financeira.
Como sanity check
Mesmo que você esteja negociando baseado em múltiplos ou outras métricas, o DCF oferece uma verificação de realidade: o valor implícito nos múltiplos faz sentido considerando os fluxos de caixa futuros?
Como suporte para earn-outs
Se há uma diferença entre sua avaliação e a do comprador, o DCF pode ajudar a identificar exatamente onde estão as divergências. Nas projeções de crescimento? Nas margens esperadas? Na velocidade de maturação?
Se você não tiver a sua própria análise vai se ver refém de uma planilha que você não conhece e não sabe questionar.
Além disso, para earn-outs que alinham os incentivos o DCF é crucial. Se você realmente acredita que vai crescer 100% ao ano, estaria disposto a apostar parte do valor da aquisição nisso? Pode ter certeza que essa continha vai estar numa planilha de DCF.
A visão de quem compra
Como ex-diretor de M&A, sei que o DCF é uma ferramenta que sempre será usada por compradores corporativos. Mesmo que a conversa inicial seja sobre múltiplos, internamente os comitês de investimento quase sempre validam a transação através de análises DCF.
Entender esse "jogo duplo" pode fortalecer significativamente sua posição de negociação.
Conclusão: O DCF na sua caixa de ferramentas de M&A
O Fluxo de Caixa Descontado não é uma fórmula mágica para determinar o valor da sua startup, mas ignorar ele seria um erro.
À medida que sua empresa amadurece, a relevância do DCF aumenta, e entender seus princípios pode fazer uma diferença significativa em como você posiciona sua empresa para futuros investimentos ou aquisições.